Nota pública da sociedade cívil contra a PEC da Anistia

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As entidades e iniciativas da sociedade civil organizada que subscrevem vêm externar extrema preocupação com o avanço da Proposta de Emenda à Constituição nº 09, de 2023 (PEC da Anistia), que poderá comprometer de maneira insanável o aprimoramento de nossa democracia. A proposta de emenda é uma ameaça para a candidatura de mulheres e pessoas negras, à integridade dos partidos políticos e à Justiça Eleitoral.

A presente Nota Pública foi elaborada a partir do parecer preliminar de Plenário, da relatoria do deputado Antonio Carlos Rodrigues (PL/SP), protocolado no dia 10 de julho de 2024.

De início, destaca-se que a atual versão da proposta, a pretexto de regular a imunidade tributária constitucional dos partidos políticos, anularia todas as sanções de natureza tributária aplicadas aos partidos políticos. Sem especificar qual seria seu marco inicial, prevê-se que a regra seria aplicável a processos com duração superior a cinco anos, criando incentivo para que as legendas busquem prolongá-los na perspectiva de alcançar a impunidade. Além disso, ao prever que a imunidade ocorreria a partir da inadimplência da obrigação, possibilita-se que se anule qualquer cobrança por condenação, bastando para tanto simplesmente que se deixe de cumpri-la por mais de cinco anos.

Ademais, diferentemente dos textos que circularam anteriormente de modo informal, a versão da proposta apresentada em Plenário, passou a determinar que tal imunidade estenderia-se às sanções determinadas “nos processos de prestação de contas eleitorais e anuais, bem como os juros incidentes, multas ou condenações aplicadas por órgãos da administração pública direta e indireta em processos administrativos ou judiciais em trâmite, em execução ou transitados em julgado, resultando no cancelamento das sanções, na extinção dos processos e no levantamento de inscrições em cadastros de dívida ou inadimplência”, ainda que estas não tenham natureza tributária. E que essas mudanças atingiriam “processos de prestação de contas de exercício financeiros e eleitorais, independentemente de terem sido julgados ou que estejam em execução, mesmo que transitados em julgado.”

Na prática, estariam anulados todos os tipos de sanções aplicadas, configurando-se uma anistia ampla e irrestrita para todas as irregularidades e condenações de partidos políticos e campanhas eleitorais.

Em outra frente, a proposta autoriza os partidos políticos a utilizarem recursos do Fundo Partidário para “devolução de recursos ao erário, e devolução de recursos públicos ou privados imputados pela Justiça Eleitoral, inclusive os de origem não identificada, excetuados os recursos de fontes vedadas”. Dessa forma, estaria autorizado utilizar recursos públicos inclusive para cumprir sanções pelo recebimento de recursos privados de origem não identificada, uma das formas do chamado ‘Caixa 2’.

Na mesma direção, a proposta institui um Programa de Recuperação Fiscal (Refis) para partidos políticos, seus institutos e fundações, isentando-os de pagar quaisquer multas ou juros acumulados em função desses débitos. A Receita Federal do Brasil já se posicionou sobre este tipo de programa e apontou que a “instituição de parcelamentos especiais não tem atingido os objetivos deles esperados: incrementar a arrecadação (diminuindo o passivo tributário) e promover a regularidade fiscal dos devedores, devendo qualquer medida proposta nesse sentido ser rejeitada”.

A proposta também prevê que, já no momento da sua promulgação, seriam consideradas cumpridas todas as obrigações partidárias referentes ao financiamento de candidaturas de pessoas negras. Aprovada desse modo, estaria-se diante da quarta anistia aos partidos políticos pelo descumprimento de normas relativas à promoção da participação política de grupos minorizados.

Também é importante notar que o Substitutivo apresentado à Comissão Especial que debateu a proposta previa que “no mínimo 20%” dos recursos oriundos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral seriam destinados às candidaturas de pessoas negras. A versão atual, no entanto, prevê apenas que sejam destinados 30% dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral para essas candidaturas e que esta regra teria aplicação às eleições de 2024, sem garantia de continuidade deste financiamento para as eleições seguintes.

Decisão de 2020 do Supremo Tribunal Federal, que referendou determinação do Tribunal Superior Eleitoral, ordena que as agremiações devem destinar às candidaturas de pessoas negras verba pública em montante proporcional ao número de candidatos. Nas eleições de 2022, o número de indivíduos que se autodeclararam negros superou a metade de todas as candidaturas. Portanto, caso a proposta em análise venha a ser promulgada, haveria na prática uma drástica redução do montante que deveria ter sido recebido pelas candidaturas de pessoas negras.

No mais, com o aparente objetivo de se eliminar a possibilidade de que o Poder Judiciário avance na definição de novas regras de incentivo a candidaturas de grupos sub-representados na política institucional, a proposta exige que qualquer política afirmativa dessa natureza teria de ser definida e - só seria obrigatória - se prevista em lei específica aprovada pelo Congresso Nacional. Esta exigência, sem previsão de prazo, esvazia mesmo os efeitos da constitucionalização das cotas de financiamento raciais, já que não haveria qualquer garantia de que seria aprovada. Assim, reforça-se o risco de que nem mesmo os 30% propostos para financiar candidaturas de pessoas negras sejam garantidos no futuro.

Ademais, de acordo com a proposta, os valores mínimos a serem destinados a mulheres e pessoas negras seriam definidos pelos partidos e apurados pela Justiça Eleitoral em nível nacional. Desse modo, seria possível concentrar os recursos destinados às candidaturas de mulheres e negros em determinados estados ou regiões, em detrimento do incentivo para o desenvolvimento e incentivo a novas lideranças em estados com baixos níveis de participação desses grupos. Ao invés de promover a redução das desigualdades, estas poderiam ser reforçadas. Além disso, se a verificação de contas ocorrer apenas no nível nacional, não seriam aplicadas quaisquer sanções, bastando que o ente nacional tenha repassado os recursos às instâncias inferiores.

O texto também representa grave risco à candidatura de mulheres. Isso porque receber os recursos a poucos dias da eleição prejudica as chances de que possam ser efetivamente utilizados e a proposta passa a exigir que 75% dos recursos destinados às candidaturas de mulheres e negros sejam destinados até 20 dias antes da data do primeiro turno da eleição e os 25% restantes, até cinco dias antes da data do segundo turno, o que só se aplica para disputas para presidente, governador e prefeito em cidades com mais de 200 mil eleitores. Portanto, no caso da imensa maioria dos municípios e de candidaturas ao Legislativo, não haveria nenhum prazo para que um quarto dos recursos seja transferido para essas candidaturas.

Vê-se, portanto, que a proposta não promove apenas uma anistia financeira, mas uma série de medidas que podem comprometer ainda mais a pouca credibilidade dos partidos políticos junto à sociedade brasileira. O fortalecimento dos partidos e o resgate de sua legitimação social são condições fundamentais para a própria sobrevivência do regime democrático no longo prazo. O que se vê nos últimos anos, contudo, é uma série de propostas legislativas que buscam flexibilizar regras de financiamento e aplicação de recursos, suavizar sanções, restringir as prerrogativas da Justiça Eleitoral e dificultar a identificação de irregularidades. A PEC da Anistia é mais um exemplo desse tipo de iniciativa deletéria.

Aprová-la, portanto, configuraria uma INACEITÁVEL IRRESPONSABILIDADE do Congresso Nacional diante de tantos e recentes episódios evidenciam a grande insatisfação da população com o atual sistema político brasileiro, com suas instituições em geral, e com os partidos políticos em particular.

Assinam:
A Tenda Das Candidatas
Ada - Ação Democrática Ampla
Amasa - Amigos Associados De Analândia
Associação As Civilistas
Associação Brasileira Das Mulheres De Carreira Jurídica
Associação Brazil Office
Associação Contas Abertas
Associação Fiquem Sabendo
Coalizão Nacional De Mulheres
Delibera Brasil
Educafro Brasil
Elas No Poder
Elas Pedem Vista
Girl Up Brasil
Grupo Mulheres Do Brasil
Inesc  
Instituto Alziras
IBRADE - Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral  
Instituto Cidades Sustentáveis
Instituto Foz
Instituto Geni - Gênero E Interseccionalidades
Instituto Latino-Americano De Educação Para A Segurança - Ilaes
Instituto Marielle Franco
Instituto Não Aceito Corrupção
Instituto Política Por.De.Para Mulheres
Instituto Soma Brasil
Instituto Update
Kurytiba Metrópole
Legisla Brasil
Movimento Independente 5050 De Advogadas Gaúchas
Movimento Mulheres Negras Decidem
Movimento Nacional Pela Paridade No Judiciário
Núcleo De Estudos E Pesquisas Sobre A Mulher - Nepem UFMG
Observatório Feminista do Nordeste
#Partida Feminista Antirracista
RenovaBR
Saman - Sociedade Amigos De Analândia
Transparência Brasil
Transparência Eleitoral Brasil
Transparência Internacional - Bras
Transparência Partidária
Vote LGBT+