Manifesto "Juntos pela Democracia e pela Vida"
É preciso reconhecer de forma inequívoca que a ameaça fundamental à ordem democrática e ao bem-estar do país reside hoje na própria Presidência da República.
Brasil, 2 de junho de 2020
Ao longo dos últimos anos o Brasil vem flertando com a tragédia de forma crescente.
Nossos profundos desafios éticos e políticos, sociais e econômicos, ambientais e humanos, de desigualdades e discriminações, são notórios e conhecidos nacional e internacionalmente. Poder superá-los pressupõe a retomada do caminho de uma sociedade efetivamente democrática, em que a pluralidade de vozes e agendas públicas seja parte plena da vida coletiva e revele nossas virtudes, nossos valores e jamais represente uma fragilidade.
O Pacto pela Democracia surgiu há dois anos para reafirmar o compromisso com esses princípios e promover ação conjunta pela defesa e pelo aprofundamento da democracia no país. Desde então, reúne mais de 150 organizações e movimentos de diferentes segmentos da sociedade em dedicação permanente a essa construção, movidos pela convicção de que só a união do campo democrático poderá enfrentar e conter a espiral de degradação da arena política que vivemos na última década.
Sem ela, ao lado da liberdade, da integridade e do exercício da cidadania plena, instala-se o espaço para o obscurantismo, a manipulação, o arbítrio e a beligerância permanentes como definidores da vida comum.
Conhecemos esse percurso que, inevitavelmente, provoca corrosão do tecido social e leva a uma trilha inexoravelmente trágica. Incontáveis experiências autoritárias pelo mundo, dos regimes nazifascistas às ditaduras comunistas ou capitalistas do século XX, passando pelo apelo de populistas autoritários também de diferentes orientações políticas ao longo da história. Distintos em muitos aspectos, todos têm em comum o fato de terem sido perversos para o conjunto da sociedade, provocando esgarçamento social e ruína institucional, econômica e humana.
Causa inquietação e repúdio notar a semelhança de muitas dessas trajetórias com o que vivemos no Brasil hoje. Portanto, é urgente o chamado para conter esta marcha de ruptura do Estado Democrático de Direito.
Combinando esforços comuns, nós, do Pacto pela Democracia, temos nos empenhado para contrapor esse cenário. De forma cotidiana, afirmamos e exercitamos o pluralismo diante da fragmentação crescente, defendemos o aprimoramento do sistema político dentro dos marcos democráticos e mobilizamos respostas institucionais para frear os ímpetos autoritários governamentais e a desconstrução dos meios de transparência e controle da ação política.
Fazemos isso por ser esse o papel da cidadania e pela consciência de que sem a democracia estaremos condenados ao fracasso em todas as demais tarefas na construção coletiva do país – na saúde e na educação, na segurança e na justiça, na conservação ambiental e na infraestrutura, na cultura e na ciência, e na promoção de uma sociedade antirracista que supere desigualdades e promova desenvolvimento econômico.
Mas chegamos agora a um contexto em que é preciso reconhecer que tais esforços já não bastam.
Isso porque a Presidência da República age em ataques graves e sistemáticos aos próprios fundamentos da vida democrática; pois em lugar de união e paz na construção conjunta do país, dedica-se a afirmar a cisão, a discriminação, o racismo e o caos como pilares de seu projeto de poder; porque o governo incita abertamente movimentos golpistas na sociedade, enquanto alicia as Forças Armadas e atores políticos corruptos para o avanço de um horizonte autocrático; e busca sistematicamente capturar as instituições de aplicação da lei para seus fins particulares, fazendo da intimidação a vozes dissonantes um padrão de atuação; além de renunciar até mesmo à tarefa mais elementar: a preservação da vida humana.
É preciso reconhecer de forma inequívoca que a ameaça fundamental à ordem democrática e ao bem-estar do país reside na própria Presidência da República.
Tal constatação precisa passar a guiar os esforços prioritários de todos que têm compromisso com a democracia, a ruptura das desigualdades e a construção ética, humanista e civilizatória na nossa história. Cabe, portanto, a todos os setores sociais e políticos no espaço democrático serem capazes de colocar a defesa desse legado comum definitivamente acima de diferenças, preferências ou objetivos particulares, para estar à altura do momento.
Este manifesto é um chamado nessa direção, somando-se a vários outros que felizmente já se multiplicam na sociedade brasileira. Precisamos de todas as vozes para afirmar a coesão da vasta maioria do país que, plural e distinta entre si, converge na recusa do arbítrio, do obscurantismo e da desumanidade como definidores da nossa existência pública. A partir desse sentido comum, é dever cerrar esforços para barrar a marcha bolsonarista, mobilizando a sociedade e as instituições para fazer falar essa maioria e trazer o presidente e seu governo à contenção e à responsabilidade por todos os meios legais disponíveis, existentes precisamente para prover os anticorpos necessários na proteção da democracia e da Constituição.
Embora se trate de uma tarefa mais simples de propor do que de realizar, ela é imprescindível. Que o horizonte de um país justo, dinâmico, generoso, humano e livre de discriminação em todas as suas formas, realizado como a construção comum que precisa ser, possa impor-se às fissuras dos últimos anos e guiar-nos à superação dos desafios presentes, como ocorreu em outros momentos cruciais de nossa história. E que possamos, pela força da convergência e de um objetivo maior, reavivar as bases de um Brasil possível, construído a partir dos direitos e da cidadania de toda sua população, afirmando, no vigor de sua diversidade e pluralidade, o caminho para o futuro compartilhado que precisamos.
Esta é, claramente, a nossa tarefa primordial agora. Trabalharemos ao lado de todas e todos dispostos a abraçá-la.